Um projeto de lei em tramitação no Senado que cria o Estatuto da Gestante tem sido criticado por prever em seu texto o direito à vida “desde a concepção”. Organizações que defendem os direitos das mulheres afirmam que a proposta representa um retrocesso e a consideram uma tática para restringir o acesso ao aborto legal no Brasil e coagir mulheres a manter gestações decorrentes de estupro. No Twitter, mulheres têm denunciado o PL utilizando as hashtags #BolsaEstupro e #GravidezForcadaETortura, que ficaram entre os trending topics da rede social nesta segunda (22) e terça (23).
Proposto pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) em dezembro passado, o PL 5435/2020 dispõe sobre o Estatuto da Gestante, “pondo a salvo a vida da criança por nascer desde a concepção”. Além disso, cria um auxílio para mulheres grávidas em decorrência de violência sexual — iniciativa que já foi discutida anteriormente e apelidada por seus críticos de “bolsa-estupro”.
Entidades e grupos de defesa dos direitos das mulheres temiam que o PL fosse votado ainda nesta semana. Havia uma articulação e uma expectativa dos senadores neste sentido, mas segundo a relatora designada para o projeto no início de março, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), isso não vai acontecer. Tebet ainda trabalha na elaboração de um substitutivo para o texto original e disse que não há previsão de quando a proposta entrará na pauta do plenário do Senado.
Tebet contou que aceitou a relatoria do projeto após negociar com o autor, o senador Eduardo Girão, que apresentaria um substitutivo. Segundo a senadora, o novo texto ainda está em elaboração, mas terá com objetivo criar um contexto de normais gerais de proteção às gestantes, para que depois se façam leis referentes ao atendimento humanizado, à amamentação e à atenção psicológica a mulheres que acabaram de dar à luz. Segundo ela, o projeto não tratará de aborto.
— Não temos o texto pronto ainda, mas não podemos trabalhar em cima do texto original porque ele já não existe mais — disse a senadora, afirmando que o texto original não será levado ao plenário. — De forma alguma.
Um dos pontos que deve ficar de fora do substitutivo é o auxílio financeiro a gestante vítima de estupro. A proposta original protocolada pelo senador prevê no artigo 11º que o Estado deve pagar a ela um salário-mínimo até o filho completar 18 anos, ou até que o pai — ou seja, o estuprador — pague pensão alimentícia.
O artigo 1º do texto original, que fala em “por a salvo a vida da criança por nascer desde a concepção”, também deve ser alterado na forma do que diz o artigo 2º do Código Civil, que determina que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Para a Procuradora Especial da Mulher no Senado, senadora Rose de Freitas (MDB-ES), o direito ao aborto em caso de estupro já é reconhecido juridicamente e não deve ser discutido. Segundo ela, o novo texto, para poder ser levado a plenário, não trará o “direito à vida desde a concepção”.
A assessoria de Girão foi procurada e afirmou que as mudanças no projeto original ainda não foram definidas.
Críticas
O PL original tem sido chamado de “sósia” do Estatuto do Nascituro, uma das principais propostas legislativas que tramitam no Congresso visando restringir o direito ao aborto já previsto em lei no país. Há alguns anos, uma articulação liderada por parlamentares evangélicos tenta incluir na legislação brasileira o direito à vida desde a concepção com este objetivo.
O próprio senador Eduardo Girão já havia proposto projeto semelhante. Segundo monitoramento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o PL 3406, de 2019, criava o Estatuto da Gestante e da Criança por Nascer, mas foi retirado de pauta por decisão do próprio autor, que o reapresentou em dezembro, com um título mais curto, mas com o mesmo sentido: “inviabilizar toda e qualquer forma de aborto no Brasil.”A interrupção voluntária da gravidez só não é passível de pena no país se for decorrente de estupro, colocar em risco a vida da gestante ou em caso de anencefalia fetal.
— É mais uma das estratégias para impedir o acesso ao aborto no Brasil, semelhante à própria PEC 181, que tinha um bom objetivo, mas acaba sendo alterada e são embutidas essas atrocidades. Esses projetos são armadilhas — afirma Jolúzia Batista, assessora técnica do Cfemea, relembrando a proposta de emenda à Constituição feita em 2015, inicialmente com o objetivo de estender a licença-maternidade, mas que acabou sendo alterada para incluir o direito à vida desde a concepção.
Batista também é critica ao auxílio a mulher gestante vítima de estupro e aos artigos do projeto que imputam a corresponsabilidade do genitor, obrigando a gestante a informá-lo.
— Além da mulher sofrer uma violência, precisa informar o violador — critica, afirmando que, em sua avaliação, o ideal seria o descarte completo da proposta, pois uma vez aprovado no Senado, as chances de aprovação na Câmara seriam maiores.
Para Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Instituto Anis Bioética, uma alteração no primeiro artigo do projeto para incluir o que já determina o Código Civil seria “melhor do que nada”, mas não resolveria os problemas do suposto estatuto da gestante.
Ela explica que o Código Civil é claro em dizer que a personalidade civil começa com o nascimento com vida e a interpretação feita é de que a proteção do direito à vida acontece de forma gradual no Direito brasileiro, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.
— A proteção à vida pré-natal é distinta e isso foi decidido quando foi discutido a questão de pesquisa em células-tronco, por exemplo — afirma Rondon, mas continua — A alteração do artigo sem a alteração do resto, não resolve o problema. Ou o projeto não inova em absolutamente nada e reforça coisas óbvias ao dizer que a mulher tem que ser atendida pelo SUS, ou inova de forma problemática, ao estabelecer a “bolsa-estupro”.
A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto também se posicionou contra o PL. Segundo o grupo, a proposta “atenta contra a dignidade das mulheres gestantes” ao criar um auxílio financeiro como estímulo para que a mulher vítima de estupro mantenha a gestação e visa impedir a mulher de interromper a gravidez em qualquer circunstância já garantida em lei.
Em nota, a Frente ainda afirma que a proteção dos direitos de gestantes já está prevista e afirmada nas políticas de atenção à saúde do Sistema Único de Saúde. O grupo também chama atenção para a alta mortalidade de gestantes por Covid-19 no Brasil, afirmando que esta é a “proteção urgente e necessária” desde o início da pandemia.
Fonte: O Globo







